O Mecanismo | Má transição entre ficção e realidade? (Crítica)

A mensagem é clara: existe um esquemão, uma ideologia, que corrói toda a sociedade brasileira. Começa lá de cima, afeta a todos e todo mundo aceita e faz parte desse sistema. Do político eleito e aclamado pelo povo, ao famoso “faz-tudo”. Aquele que você chama para consertar algo que quebrou ou está danificado na sua casa. Desta forma, todo mundo participa, todo mundo sabe que é assim que sempre funcionou e ninguém está incomodado com isso. O Mecanismo, uma das mais recentes estreias da Netflix retrata (e critica) exatamente esse aspecto da sociedade brasileira.

A narrativa criada para passar essa mensagem usa como argumento o, nem tão recente, escândalo de corrupção da Lava Jato. Caso que já se desdobrou em muitos outros escândalos de lavagem e roubo de dinheiro público. Envolvendo empresários das mais altas classes, assim como quase toda a classe de políticos eleitos no país.

Entretanto, a série é muito mais sobre o processo investigativo que levou à descoberta do escândalo e abertura do caso. É diferente do reality show que tem sido os processos judiciais transmitidos ao vivo, pela televisão e internet, nos desdobramentos reais da Operação Lava Jato. Com juízes e advogados com discursos teatrais e longas maratonas que provam que a justiça brasileira é muita coisa, exceto ágil e objetiva. — E que essa crítica também se estenda ao legislativo. Quando o Congresso precisa decidir algo de suma importância e faz assim sua própria maratona ao vivo. Faltando só pedir ao final de cada transmissão o joinha e o compartilhamento em suas redes sociais por tantas horas ao vivo decidindo os rumos do país.

Sendo assim, O Mecanismo é muito mais sobre a crítica da mentalidade da malandragem do brasileiro em querer levar vantagem em tudo. E menos sobre relatar com precisão os eventos que deram início ao descobrimento do escândalo do Lava Jato.

Nome aos bois

Pra mim a coisa mais incômoda de O Mecanismo é a forma como a série retrata algo real e a transforma em fantasia. Quase um misto de sátira e paródia. Nome e situações são alterados para deixar a narrativa mais cinematográfica. O que normalmente não seria um problema, se isso não fosse feito de forma quase que jocoso.

Posso dar como exemplo o personagem do juiz Paulo Rigo, baseado na figura do juiz Sérgio Moro. Rigo tem toda uma caricatura muito escrachada em diversos momentos do show. Há uma cena onde o juiz aparece deitado na sua cama lendo os quadrinhos do “Vigilante Sombrio”. Ou em outra onde o mesmo dá um autógrafo em um jornal e sorri logo em seguida. Tudo bem, eu entendo o que a série está dizendo aqui, mas precisa fazer de forma tão… teatral? Falta uma sutileza. Passar a ideia da figura real do personagem de forma indireta, que o espectador conclua isso por conta própria. Se um holofote e placas apontando essa direção.

O Mecanismo sofre de pontos assim por todo o lado, não só na figura do Figo/Moro. Nesse ponto é talvez legal lembrar de Narcos e sua excelência ao criar uma narrativa de entretenimento com base em fatos reais. Um produto que também pertence à Netflix e também conta com José Padilha como diretor e produtor executivo.

Narcos vs O Mecanismo

Um dos pontos altos de Narcos é a forma como o show encontra recursos para transitar entre o real e o ficcional. Da vida e morte do narcotraficante Pablo Escobar. Que sequer precisou de um nome inventado, como “Pedro Escovão”, ou algo assim. A transição da ficção e realidade em Narcos é conduzida com uma maestria que O Mecanismo nem sequer chega perto.

Se Narcos lembra um seriado documental, O Mecanismo está mais para uma mini série com cara de novela. Pra mim foi uma decepção nesse sentido. Esperava um tom narrativo bem diferente.

Não que Narcos seja uma retrato fiel da história do Escobar. Não é. Personagens e situações também foram alteradas para dar carga dramática. Houve situações onde dois personagens viraram um no show (lembro de ter pesquisado isso, mas não sei agora citar quem). Entretanto a série manda bem quando mostra fotos e vídeos reais da época para mostrar como a ficção não está distante da realidade. Coisas absurdas e horrorosas de fato aconteceram e o show não está inventando isso.

Já O Mecanismo falha justamente nesse aspecto. Havia dinheiro dentro da parede da casa do diretor da Petrobras como a série mostrou? Eu sinceramente não me lembro, e nem fui pesquisar. Porém se havia, essa seria um momento legal para a série, se tivesse os trejeitos de Narcos, mostrar na realidade. Dar esse choque da realidade dentro da ficção é tão importante quanto querer apenas denunciar uma ideologia de corrupção interna em nosso sistema.

Minha esposa me perguntou diversas vezes ao ver o seriado: “isso realmente aconteceu?”. Eu fiquei em dúvida em tantos outras para a mesma coisa. Se a série, que é baseada em fatos reais, não está sabendo me dizer isso, é porque em algum momento sua direção falhou em deixar claro isso.

Considerações finais

Feito a crítica, não acho que O Mecanismo seja de todo mal. Os primeiros episódios são particularmente ótimos. Gosto do personagem de Selton Mello, este sim claramente inventado para fazer a narrativa andar dentro do show. Entretanto ela tem um pingo de realidade, sendo baseada na figura do Gerson Machado, um policial que realmente hoje em dia está aposentado, mas foi um dos que deu pontapé inicial na investigação que depois viria revelar o esquema da Lava Jato.

Existem ótimos momentos dentro da história em que o espectador fica genuinamente revoltado com o sistema, ou o tal… mecanismo. A série trabalha muito bem o aspecto da investigação policial, ao menos como narrativa de ficção. Como o sistema investigativo brasileiro é falho. Como o Ministério Público é falho. E até mesmo a ideia de que se não fosse um juiz, com muita boa vontade de fazer seu trabalho, nada desse caso se desdobraria da forma como se desdobrou.

Próximo do fim, que não é exatamente um fim, a narrativa cria uma gordura para supostamente manter um suspense. Não é ruim, mas fiquei com uma sensação ruim de ideia interrompida. O show poderia avançar mais um pouco na cronologia dos eventos, mas evita entrar na caçada aos políticas. Fica ainda na fase de caçada aos empresário.

Não retrata o impeachment ou todo esse momento de responsabilização do Lula por todos os problemas de corrupção que o Brasil tem sofrido nos últimos anos. A série não escolhe lados ou partidos (ou diz não escolher). Mas a verdade é que ainda não chegou a este momento dos eventos do caso Lava Jato. Ela flerta com esse aspecto, porém malandramente o guarda para explorar em uma segunda temporada, na qual sinceramente espero que aconteça.

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