Androides sonham com ovelhas elétricas? | Futuro, 50 anos atrás! (Leitura concluída)

Lançado em 1968, este clássico da ficção científica, escrito por Philip K. Dick, é um conto estranho e bizarro, em que o planeta Terra praticamente esgotou seus recursos naturais por conta de uma grande guerra, de pessoas que possuem animais como símbolo de status e onde parte da população migrou para Marte. É também a obra que inspirou o clássico cult hollywoodiano chamado Blade Runner.

Androides sonham com ovelhas elétricas?sim, este é o nome real do livro – está completando 50 anos em 2018, e em setembro do ano passado, em razão desta ocasião, a Editora Aleph preparou uma edição mais do que especial da obra. Recheada de materiais extras, em capa dura e uma sobre capa protetora. Convidou ilustradores para retratatrem certas passagens do livro, e deu um acabamento gráfico único e digno das melhores e mais bonitas obras já lançadas pela editora.

Philip K. Dick é um gênio da ficção científica, um dos maiores nomes, e esta edição especial é mais do que perfeita para àqueles que desejam conhecer mais do autor ou até mesmo iniciar a leitura de seus livros. Esta edição de Androides sonham é um belo pontapé inicial.

O livro faz uma bela apresentação sobre o autor, falando sobre suas obras, sua vida, traz uma de suas últimas entrevistas antes de vir a falecer em 1982. Abre um debate profundo sobre pontos e argumentos apresentados pelo mesmo na trama de Androides sonham, além de recriar algumas comparações em relação ao filme que se tornou um clássico da década de 80.

Versus Blade Runner

E falando na adaptação de Ridley Scott para os cinemas, preciso apontar algumas coisas. Primeiramente, para entender melhor o significa da obra original, acabei (entre a leitura da mesma) revendo Blade Runner, enquanto também fui assistir Blade Runner 2049, sequência que foi lançada ano passado.

Em relação ao Blade Runner original, entendo que existem diversas versões e nem todas agradam aos fãs. Neste caso assisti a versão do diretor, fugindo da versão original para os cinemas, que dizem ser a mais problemática. Por isso não vou saber apontar as diferenças entre tais versões, apenas sabendo que elas existem.

Dito isso, posso dizer que entendo porque o filme se tornou um filme cult, popular no gênero cyberpunk, mas não significa que gosto de tal adaptação. Especialmente depois que terminei de ler a obra original. Em relação a Blade Runner 2049, que dá para dizer (agora) que não foi como esperado na bilheteria dos cinemas, a sequência é ainda mais distante do livro de Dick, fazendo uma melhor conexão com o filme clássico mesmo.

É preciso entender que Blade Runner é uma coisa e Androides sonham com ovelhas elétricas? é outra coisa. Ambos ensaiam e namoram passagens entre si, mas há muita coisa diferente entre si. Achei a obra original mais complexa, mais detalhada, ainda que mais maluca e inventiva. O filme é mais sombrio, mais realista. Ele evita usar todos os elementos do livro para manter uma ideia mais concisa e coerente com uma narrativa mais cinematográfica. O livro, por outro lado, permite-se ir além do absurdo e fazer sentido dentro de tudo isso. Aliás, Philip K. Dick foi um escritor famoso por conseguir tornar o absurdo e o maluco interessantes e intrigantes em suas obras.

O que Blade Runner faz melhor do que sua obra original provavelmente é o seu desfecho, com o monólogo do replicante em meio a um temporal, à beira de sua morte: Eu vi coisas que vocês não imaginariam. Naves de ataque em chamas ao largo de Órion. Eu vi raios-c brilharem na escuridão próximos ao Portal de Tannhäuser. Todos esses momentos se perderão no tempo, como lágrimas na chuva. Hora de morrer. Esta cena, assim como a fala, ficaram imortalizadas como um dos grandes momentos do cinema como arte. Isso é coisa do Ridley Scott. Não há nada assim no livro, ainda que exista um personagem no conto original que tenha uma certa melancolia pela forma como é desprezado pela sociedade.

Enfim, ter assistido Blade Runner não significa por tabela conhecer a obra original. Pra mim o filme é um pouco chato. Não gosto de como o mesmo envelheceu. Ele ainda traz ótimas sacanas, tem bons momentos e trabalha com uma visão própria. Mas tem um roteiro lento para os dias de hoje. Tem que assistir com esse olhar de um outro tempo e de suas limitações da época. No geral, achei o livro muito mais interessante.

Androides e animais elétricos

O futuro não é um lugar feliz. Ao menos na visão apocalíptica de Philip K. Dick. Androides sonham não é um livro que fala sobre o fim do mundo ou como ele chegou a sua decadência. É um livro após tudo isso. O leitor vai acompanhar o dia a dia de Rick Deckard, que é um caçador de recompensas que trabalha com a polícia, aceitando casos e sonhando (e se frustrando) em ter coisas que não pode consegue ter.

A obra retrata a infelicidade das pessoas que ficaram na Terra, que utilizam-se de caixas de emoções para se sentirem melhores (ou piores), ficam vidradas em uma programa de TV a qual só tem um único show que está sempre ao vivo dizendo como as coisas são melhores em Marte. As pessoas também participam de uma religião onde projetam suas mentes em um mundo que poderia ser dito como virtual, afim de ser glorificadas com felicidade e paz de espírito. Em resumo, é um mundo horrível.

Aqui Philip K. Dick brinca um pouco com essa coisa de humanos infelizes vivendo em meio a degradação do que um dia foi uma sociedade imponente, enquanto um grupo de androides fogem de Marte justamente para virem viver na Terra, cansados de serem escravos dos humanos no planeta vermelho. Deckard é o agente que irá caçar estes fugitivos.

A trama em nenhum momento leva os personagens para Marte, se passando a todo tempo na Terra. Há uma ou outra lembrança dos Androides que remetem ao seus passados em Marte, mas o foco do livro é realmente a vida na Terra, o que ela se tornou e quão terrível tudo é por aqui. Talvez na reflexão de como nós, seres humanos, somos terríveis.

Deckard está caçando esse grupo de androides fugitivos porque sonha em ter um animal de verdade. Pois é, nesse mundo as pessoas cuidam de animais como se fossem o bem mais precioso de tudo. E não cachorros ou gatos. Mas qualquer tipo de animal: cavalos, cabras, sapos, ovelhas e afins. Afinal toda a vida na Terra foi quase que extinta e não há animais por aí para serem caçados. Eles fazem parte de um grande catálogo de compra, onde as pessoas podem pedir estes animais, se tiver dinheiro para pagar o financiamento já que o preço dos bichos são exorbitantes.

Há esse elemento na história em quê revela que Deckard já tinha um animal de verdade, uma ovelha, porém ela morreu e ele sente envergonhado por ter perdido o animal, e para não perder o status frente aos seus vizinhos, um destes inclusive vive exibindo sua égua à Deckard, o mesmo resolveu comprar uma ovelha elétrica. Quase real, se você não ficar analisando-a de forma muito próxima. Deckard também se envergonha disso e sonha em ter novamente um animal de verdade.

Vê como o livro é estranho? Não que seja ruim. Mas as motivações parecem bobas. Porém quando colocadas dentro da perspectiva de todo o resto de absurdos que é esse mundo, elas passam a soar interessantes, ácidas como se Dick estivesse usando metáforas ou alusões para criticar vícios da nossa sociedade, ao mesmo aqueles da época em que a obra foi criada.

Androides sonham não narra sua trama apenas sobre a ótica de Deckard. O tempo de exposição da história também divide seu palco com John R. Isidore, um homem comum, categorizado como de inteligência muito simples e portanto incapaz de ser aceito no projeto de imigração para Marte. Isidore vive sozinho em um prédio e trabalha em uma clínica para animais. O mundo dele muda quando uma das androides que Deckard está caçando se muda para seu prédio.

Não vou dar muito detalhes desse ponto do livro, mas é muito interessante toda a construção do personagem de Isidore. Em certas passagens o personagem toma até mesmo toda a atenção para si, deixando a trama de Deckard menos expressiva. Isidore acaba desempenhando um papel importante na história e é um contra ponto interessante a certos ângulos da personalidade de Deckard.

Quanto aos androides, da mesma forma como o filme que todo mundo conhece, existe uma brincadeira aqui sobre estes terem se tornados tão humanos quanto os seres humanos. E se eles estão infiltrados na Terra e sequer sabemos ou percebemos? Há essa brincadeira na obra. Existe até mesmo o questionamento de pessoas que acham que são pessoas, enquanto na verdade são androides. Deckard passa por um momento assim, mas que não é algo tão aberto a interpretações como é no filme da década de 80. O livro discute assim o que é humanidade, o que é estar vivo.

Dick constrói muito bem estes personagens. Isso leva a consequências e reflexões muito boas para o ato final do livro. E assim, Androides sonham acaba sendo uma colcha de retalhes de diversas ideias e pontos polêmicos em torno da sociedade. O que é estar vivo, sobre a percepção de realidade, preconceitos e discriminação, frustrações e desejos daquilo que as pessoas não podem alcançar. Nesse sentido é uma obra meio melancólica, sem necessariamente ter um final feliz onde tudo e todos conseguiram seus objetivos.

Considerações finais (sem spoilers)

Androides sonham com ovelhas elétricas? não é um livro muito grande. A obra original tem 210 páginas. Esta edição da Editora Aleph salta para aproximadamente 320 páginas por conta de todo belíssimo material extra que foi adicionado aqui. Claro que há que se considerar que não é um livro perfeito e que existe elementos que hoje em dia soam bem velhos ou retrógrados.

A relação de Deckard com sua esposa ou até mesmo a forma como ele vai se relacionar com Rachael Rosen, outra personagem que o livro paira dúvidas sobre ser ou não ser uma androide (e aqui não vou revelar se é ou não), tem meio que essa coisa de como personagens femininas eram sempre envoltas no mesmo clichê, na sexualidade em si, e quase nunca tinham papeis importantes, que não fosse condizente com os clichês do papel da mulher em tempos preconceituosos do passado. Não sei se dá para dizer machista, pois, de novo, é uma obra que tem que se pensar na época em que foi escrita. Não é algo que chega a incomodar, mas é um daqueles sinais do tempo sobre a obra.

A própria tecnologia do futuro parece meio ultrapassada já. É um cyberpunk que tem o básico do básico. Carros voam, as pessoas podem ir até Marte e existe apenas a televisão. As coisas de emoções e toda a conexão com o Deus dessa sociedade também são estranhas, mas parecem coisas que mexem com a química cerebral e com um namoro em relação a realidade virtual. É um futuro bem básico, diferente do que depois o cinema veio a retratar. Porém, novamente, não é algo que torna a obra falha ou ruim. O que Dick imaginou como realidade na década de 60 por si só já é muito impressionante. E nós ainda não colonizamos Marte ou temos androides tão humanos a ponto de não mais conseguir identificá-los. Então o futuro ainda está lá.

Androides sonham também tem bons momentos de ação e de tensão. Deckard nem sempre sabe a melhor forma de agir e isso cria diversos problemas para si. Gosto do como ele fica em dúvida ao longo do livro, de se aquilo que ele está fazendo é correto e questionando sua vida. Da mesma forma como Isidore também aceita que sua vida pode ser mais interessante se evitar a solidão a qual havia imposto a si mesmo. O encontro destes dois personagens é uma das ótimas passagens do livro.

Acho que posso encerrar por aqui, novamente afirmando que àqueles que desejam saber mais sobre Philip K. Dick, que é de fato um dos maiores gênios da ficção científica clássica, podem começar por esta edição especial da Aleph. Para fãs de Blade Runner, o livro é ainda mais obrigatório, pois além de ser o que influenciou a adaptação nos cinemas, possuem muito outros elementos que ficaram de fora e que são tão bons quanto. É algo mais completo, ainda que mais complexo. É genial, mas talvez um pouco datado. Por isso, talvez, esta seja a melhor versão possível para a obra, como todo o material extra que faz todo esse contexto ao leitor, permitindo-o absorver o máximo desse pós apocalíptico louco aonde você não iria ficar feliz tendo uma ovelha elétrica. Ou ficaria. Quem sabe?

Quem ficou interessado no livro saiba que é possível encontrá-lo por um ótimo preço na Amazon. Fica aqui a indicação.

Mais alguns trechos

Edição de 50 anos impecável, para colecionador
Perfeito para adentrar no mundo de Philip K. Dick
Publicado em 1968, há elementos datados
Bons argumentos e reflexões sobre humanidade
Maior do que o cultuado filme de Ridley Scott
Futuro estranho, cyberpunk talvez básico

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