Justiça Ancilar | Naves pensantes! (Leitura concluída)
Justiça Ancilar é uma obra curiosa. O livro é vencedor dos prêmios Hugo, Nebula – entre outros do gênero. Premiações importantes no meio literário e também do gênero de ficção científica. É uma obra recente, publicado lá fora em 2013 e que chegou este ano ao Brasil pela Editora Aleph. É o primeiro livro da denominada Trilogia Império Radch, e foi escrito pela escritora Ann Leckie, sendo este uma de suas obras mais notáveis e de maior sucesso.
Ou seja, trata-se de um livro de peso. Premiação, aclamado pela crítica, por fãs, que faz parte de uma série de livros, e é uma ficção científica moderna, tal qual outras obras recentes apresentadas aqui no site, como Coração de Aço de Brandon Sanderson e Guerra do Velho e Encarcerados de John Scalzi. Justiça Ancilar tem diversos méritos dentro da ficção científica moderna e apresenta uma série de ideias legais.
Porém, tendo-o já concluído sua leitura, na minha opinião, ainda não sei exatamente se todos esses elogios não acabam criando expectativas além do esperado para quem vai ser este livro. Admito que fui ler Justiça Ancilar sabendo de tudo isso e fiquei um pouco decepcionado ao final. Não foi tudo aquilo que tantos elogios me prometeram, ainda que esteja muito distante de ser um péssimo livro. Muito pelo contrário.
Então vou dar aqui uma dica óbvia, e isso vale não só para esse livro, mas para qualquer outro tipo de entretenimento, assim como filmes ou jogos. Expectativa demais nunca é bom. Não é porque algo é muito bem avaliado e aclamado que obrigatoriamente vá cair no seu gosto pessoal. Justiça Ancilar segue por essa linha. Ele é bom, mas não é melhor ou pior do que há de bom em obras atuais de ficção científica. Ao menos neste primeiro livro, é claro.
Se sentir confuso faz parte da viagem
Enquanto escrevo estas impressões ainda não tenho certeza do quanto de seu universo devo explicar aqui ao leitor. Entender o mundo ao redor da protagonista, Breq, meio que faz parte da proposta do livro, que usa muito do elemento da confusão para deixar o leitor curioso e interessando em continuar a obra.
Um bom exemplo disso diz respeito ao pronome feminino. Há um contexto dentro do livro, direcionado a cultura e sociedade a qual Breq veio, em que todos são tratados por um único tipo de pronome, sem diferenciar gêneros. Então como a história é contada na perspectiva de Breq, todos os personagens, incluindo os masculinos, são referenciados usando o pronome no feminino.
Esse aspecto do pronome é algo interessante, porque mexe com a cabeça do leitor. Há personagens em que não dá para ter certeza do que são, e no contexto da obra talvez isso sequer importe. Porém é divertido acompanhar um personagem da história que está a todo momento sendo tratado no gênero feminino e no decorrer do livro alguém de fora vem e revela ao leitor que trata-se na verdade de uma pessoa do sexo masculino. Quando isso ocorre a perspectiva sobre esse personagem muda? Não necessariamente. Mas te faz pensar se deveria.
Fora que a trama é contada em dois pontos distintos de uma linha do tempo conectada. Uma que aos poucos revela quem é Breq, e é uma história que já aconteceu (está no passado), e a outra linha é a do presente, com as consequência desse passado que o leitor ainda não entende plenamente até ser necessário dentro da obra. Próximo ao final, a história do passado cessa e fica somente a história do presente, porém o livro passa dois terços intercalando capítulos do passado e do presente.
Isso até poderia ser mais legal, mas há uma gordurinha (até necessária) no primeiro ato do livro que me deixou um pouco cansado da história do passado, que demora a engatar (mas quando engata fica realmente boa). O fato é que ambas as histórias então sendo narradas dessa forma intercalada e ambas possuem momentos em que a trama fica tensa e emocionante. Porém o capítulo acaba e você precisa ir para a outra linha do tempo antes de continuar àquela que estava mais emocionante. Isso me deixou com a impressão de uma quebra ruim da dinâmica e do ritmo que queria para a minha leitura. Quase cogitei pular capítulos para manter temporariamente a linha do tempo mais consistente, mas acabei não fazendo.
Enfim, mas isso, dos pronomes e de dois contos intercalados, é só uma parte da estrutura narrativa de Justiça Ancilar. Ainda não consegui falar nada sobre a trama e seu universo. Mas farei logo adiante. Não se preocupe.
Um império galático e naves que pesam por si próprias
Justiça Ancilar se passa em um futuro distante. Não há nada sobre a Terra ou sobre a raça humana colonizando o espaço. A construção desse universo é feito aqui de forma natural, sem ficar explicando como as coisas chegaram ao ponto em que chegaram. Simples assim. O que não acho ruim.
Existe então esse império tomando conta desse setor da galáxia, um império chamado Radch. Império são coisas ruins, certo? Eles são arbitrários, violentos e tomam aquilo que querem para si e se sentem superiores a aqueles que não fazem parte de sua casta. E matam todos que discordam de suas leis e regras. Com o Radch as coisas não são tão diferentes assim. Há então uma líder, chamada de Senhora do Radch, que recebe o nome de Anaander Mianaai, que é a responsável por tudo de ruim que o Radch representa. Até aí tudo bem, livros de ficção espacial normalmente utilizam-se de tal elemento.
O que Justiça Ancilar traz de diferente é que esse império criou naves com super inteligências artificiais. A ideia da obra é que são basicamente naves vivas, que pensam por si só e possuem até mesmo personalidades. E não pense apenas nas carcaças de naves gigantescas com olhos e um sorriso sarcástico – como seriam em um desenho animado da década de 30. Estas naves possuem meios de transmitir sua mente para corpos orgânicos (a qual não darei muitos detalhes sobre isso porque descobrir faz parte da viagem pela leitura do livro). São naves que possuem ancilares (daí o nome do livro), ou seja, dezenas ou centenas de corpos que estão interligados a uma única inteligência artificial.
Aliás ancilar é uma palavra incomum no dia a dia do nosso português, mas quer dizer auxiliar, suplementar, segundo uma rápida consulta em qualquer dicionário de nosso idioma. Estas Anciliares possuem certa independência entre si, mas também possuem mente, visão e sentidos interconectados. É uma tremenda loucura, mas é muito incrível quando colocado em prática dentro do livro.
Breq era um Ancilar de uma nave chamada Justiça de Toren. Logo nas primeiras páginas o leitor descobre que a nave não mais existe. Breq é a única parte viva da nave que restou e vaga por aí tentando buscar justiça pelo que lhe aconteceu. Até mesmo por coisas que ela fez no passado quando precisava obedecer às ordens do império Radch, sem ter o livre arbítrio de conseguir questionar tais ordens.
O leitor acompanha neste primeiro livro a jornada de vingança Breq, enquanto revive um segmento de seu passado, quando ainda fazia parte de um todo como a nave Justiça de Toren.
Pra mim é este elemento a coisa mais legal em Justiça Ancilar. A ideia de uma inteligência artificial que não dá mais para se chamar de “artificial”. Breq não é um robô, uma máquina. É a proposta da premissa da evolução, o próximo passo de inteligências artificiais. Sem que sequer isso esteja colocado em foco como discussão do livro. Em nenhum momento os personagens estão discutindo se Breq não devia ter sentimentos ou alegando que a mesma não deveria ter vontade própria. Há um senso de discriminação com a ideologia da criação de ancilares, mas por conta de como são criadas, mas jamais pelo que elas se tornam. É muito incrível essa narrativa sobre a ótica de Breq.
E o livro é sutil quando fala de sentimentos ou até mesmo preconceitos. De amor, aceitação ou respeito. Há essa passagem no passado que é tudo sobre isso. As motivações de quem Breq se tornou no presente advém de uma ruptura em seu passado que até mesmo é difícil para ela entender.
O mundo de Justiça Ancilar ainda é um pouco nebuloso em vários aspectos. Mesmo após terminar o livro. Não é sobre contextuar a política espacial do tal império, ou revelar o que as pessoas pensam do mesmo. É sobre Breq querer se vingar da soberana que está no topo disso tudo. E para isso, a obra precisa contar a sua história. E apenas isso.
Considerações finais (sem spoilers)
Disse lá no começo: Justiça Ancilar é uma obra curiosa. Eu fiquei entretido lendo o livro. Há trechos e segmentos realmente inacreditáveis, destes que você não consegue parar enquanto não terminar de ler. Acho que ápice está no final da história do passado, bem mais do que no final da história do presente em si.
Menciono isso porque há um momento de ação que conclui a história do livro, o conto do presente. Talvez seja comigo, mas achei incrivelmente confuso a construção desse segmento em si. É muito maluco o local onde isso ocorre, a forma como ocorre etc. Dá para entender a ideia, mas não consegui visualizar da forma como acho que a autora visualizou. E aí não achei tão emocionante assim. Ao contrário do clímax da história do passado, que me deixou aflito e triste pelo seu desfecho.
Por outro lado, gosto de como a antagonista da história, a Senhora do Radch, cresce ao longo da trama. Há uma grande sacada em torno da personagem que torna tudo realmente complexo. Tudo bem que esse elemento em si também é parte responsável pela confusão mental que é o final da história, isso para não dizer que existe uma arma especial dentro da trama que vem de uma forma a qual gostaria de ter mais informações a respeito do povo que a criou. Até tem isso no livro, mas é meio rápido, em meio a história dos povos exterminados pelo tal império. Acho que gostaria de ter uma ciência ficcional melhor costurada para estes termos.
Breq também é uma excelente protagonista. É difícil de mentalizar todas as suas ações e reações dentro da trama, mas isso não é um defeito do livro, e sim um de seus desafios. A personagem é muito bem construida e suas ações refletem exatamente o que o enredo está colocando para a mesma. A última parte do livro, a qual ela retorna a um lugar a qual não é mais bem vinda, é um excelente momento do enredo, uma das passagens mais legais da história do presente.
Ao fim, eu sinto que Justiça Ancilar é uma obra de apresentação de ideias. Tem ótimos elementos, mas não chega a ser o clímax de algo. Existe mais dois livros que vão continuar essa aventura, Ancillary Sword (2014) e Ancillary Mercy (2015), ambos ainda não lançados no Brasil. O pressentimento que tenho é que suas sequências vão potencializar o que este primeiro livro começa a elaborar.
Entendo todos os elogios e premiações que a obra recebeu. Pensando sobre o aspecto da ficção científica e de como a história é ousada em não ficar pontuando construção de seu universo, entregando de cara algo já mastigado ao leitor, além de toda essa sacada da ausência de percepção de gênero (que em uma obra visual seria praticamente impossível de impor) somado a excelente ideia de um próximo passo evolutivo da vida advento de inteligências artificiais, tudo isso faz Justiça Ancilar ser algo diferente, incomum. É de se deixar curioso, sem dúvida alguma.
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